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Considerada o grande mal do século 21, a obesidade sempre foi uma doença muito complexa. Ao longo dos anos, vimos surgir uma lista enorme de tratamentos não invasivos, apresentados como milagrosos para combater a patologia, que é resultado de uma combinação de estilo de vida e fatores genéticos associados à composição corporal. Para a maioria das pessoas, essas opções falhavam, especialmente quando não estavam aliadas à reeducação alimentar, combate à ansiedade — que pode levar à compulsão alimentar — e inserção de atividade física frequente no dia a dia.

Ao menos, até agora. Nos últimos anos, um novo medicamento entrou em cena: a semaglutida, substância aprovada em 2005 pelo FDA, agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, para o tratamento da diabetes tipo 2. Desde 2014, ela tem sido usada off-label para a perda de peso.



Segundo previsão da consultoria Goldman Sachs, o remédio deve atingir a marca de US$ 100 bilhões em vendas até 2030, se tornando um dos mais lucrativos da história. Quando prescrita corretamente e usada sob supervisão médica, a semaglutida promove avanços significativos no combate à obesidade, diminuindo em até 20% o peso corporal. Entretanto, seu alto valor no mercado [o tratamento mensal feito com injeções subcutâneas pode chegar a mais de R$ 1.

200 no Brasil e cerca de US$ 1.000 nos Estados Unidos] acabou tornando o medicamento um privilégio para poucos. Muito poucos.

Por isso, o fim da patente da substância, produzida pela empresa dinamarquesa Novo Nordisk, é tão aguardado. Previsto para ocorrer em 2026 no Brasil e na China, o movimento deve fazer com que o valor de mercado do produto caia em até 50%, abrindo espaço para a criação de genéricos do medicamento. O resultado, ainda difícil de mensurar, é possível de imaginar.

Uma grande parcela da população que sofre de obesidade poderá ter acesso até mesmo pela rede pública a uma substância que combate o excesso de peso pela raiz. E que, assim como a estatina, classe de remédios administrados para o controle do colesterol, pode ser usada por toda a vida, promovendo, também, o fim do efeito sanfona. “O que vimos ao longo dos anos foi o tratamento de uma série de doenças crônicas em decorrência da obesidade, mas nunca um tratamento efetivo para ela.

A semaglutida é, sem dúvidas, revolucionária nesse aspecto, e pode colocar até as cirurgias bariátricas em desuso”, explica o professor e doutor Filippo Pedrinola, endocrinologista da Faculdade de Medicina de São Paulo. Diferentemente de outras medicações já existentes para diabetes tipo 2 no Brasil que também agem sobre a obesidade, como a liraglutida (Saxenda), que foi aprovada como tratamento auxiliar para o controle do peso em adultos em 2022, a aplicação da semaglutida não é diária, mas semanal, o que contribui para sua popularidade entre os pacientes. A previsão da Organização Mundial de Saúde é de que, se nada mudar até 2035, metade da população mundial sofrerá de sobrepeso e obesidade [entende-se como sobrepeso um índice de massa corporal acima de 25, enquanto a obesidade é superior a 30].

O montante de dinheiro movimentado em torno da doença é impactante. Só nos Estados Unidos, são gastos anualmente mais de US$ 200 bilhões com tratamentos para a perda de peso. Aqui no Brasil, um estudo feito pelo IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar) aponta outros dados alarmantes.

Em 2030, mais da metade da despesa assistencial nacional pode estar ligada à obesidade, assim como a seus tratamentos e comorbidades. Se levarmos em conta que, entre 2020 e 2022, a procura pela semaglutida aumentou em 300% no mundo todo, segundo dados da plataforma de análise Trilliant Health, podemos ter uma ideia da escalada que promete acontecer quando o medicamento se tornar acessível. As consultorias, experts em estudar tendências de comportamento, não param de traçar projeções sobre o possível fenômeno, que tem o poder de influenciar nas mais variadas indústrias.

Nas análises, elas imaginam o perfil do consumidor nas próximas décadas, que, por consumir semaglutida, tende a comer e beber cada vez menos, além de ganhar um corpo mais leve e ágil. A onda também deve levar à diminuição de patologias como doenças cardiovasculares, hipertensão, diabetes e uma série de cânceres ligados diretamente ao acúmulo de gordura nos órgãos. Mas a semaglutida também tem efeitos colaterais, como náuseas, vômitos, diarreia e prisão de ventre, além de outras condições que ainda estão sendo estudadas.

“A semaglutida atua em nosso organismo como o GLP-1, um hormônio produzido pelo nosso intestino e liberado na presença de glicose. É ele quem sinaliza ao cérebro que estamos satisfeitos. Além de desacelerar o esvaziamento gástrico, ele melhora a sensibilidade à insulina e reduz o consumo alimentar.

É exatamente assim que medicamentos que 'simulam' esse mesmo hormônio atuam no sistema nervoso central: diminuindo a fome e, consequentemente, a sensação de prazer trazida por alimentos gordurosos e bebidas alcoólicas”, explica Fabiana Hanna Rached, cardiologista do Hospital Albert Einstein. A médica, porém, faz um alerta: “É importante compreender que não existe obesidade saudável, assim como é imprescindível entender que essa classe de medicamentos não deve, sob nenhuma hipótese, ser administrada sem acompanhamento médico. Ele deve ser direcionado apenas a quem sofre da doença, e não àqueles que desejam perder quilinhos a mais por questões estéticas”.

Diretamente afetada por esse tipo de medicamento, a indústria alimentícia já começa a sentir os reflexos do que vem sendo chamado no exterior de “Era O”. A rede norte-americana Walmart, por exemplo, declarou recentemente que vem analisando o impacto do uso do Ozempic e do Mounjaro [remédio fabricado pela farmacêutica Eli Lilly, também inicialmente indicado para o tratamento da diabetes tipo 2 e que tem como princípio ativo outra substância inovadora, a tirzepatida] em seus negócios. A Nestlé é uma das gigantes a apostar suas fichas em um novo público-alvo.

No último mês de maio, a empresa lançou a linha Vital Pursuit, voltada aos usuários dessa classe medicamentosa. Trata-se de uma gama de produtos congelados em porções menores e ricos em proteínas, vitaminas e minerais, com objetivo de mitigar alguns dos efeitos colaterais desses remédios que, ao reduzirem o apetite, também reduzem a ingestão de nutrientes, o que pode levar à perda de massa muscular e deficiência de substâncias essenciais para a saúde. Segundo a empresa de consultoria norte-americana Ace, essa nova conjuntura deve afetar o varejo alimentar como um todo, reduzindo também a oferta de chocolates, biscoitos e a gama de ultraprocessados.

De uma forma geral, podemos imaginar um novo layout dos hipermercados: saem de cena corredores tomados por embalagens tamanho família, entram em ação gôndolas prontas para atender a um público interessado em alimentos saudáveis ou criados especialmente para eles. Segundo os especialistas, nem mesmo o turismo estará livre de impactos. Numa sociedade em que se come e bebe menos, roteiros que têm a alimentação inclusa no custo devem ser beneficiados.

A Playa Resorts, por exemplo, empresa de capital aberto na Nasdaq que opera em 25 resorts, tem seu modelo de negócio focado no all inclusive . O sistema opera em hotéis como as redes Hyatt, Hilton e Wyndham. Entre as maiores despesas dessas empresas, estão os gastos relacionados aos alimentos e bebidas, que correspondem a 15%.

Com a queda significativa do consumo, especula-se uma possibilidade desses operadores economizarem até US$ 100 milhões por ano. As companhias aéreas também começam a imaginar um novo mundo, com aviões ocupados por viajantes mais leves. “Se o passageiro médio perde 4,5 quilos, isso reduz 1.

790 quilos de cada voo da United Airlines, implicando em uma economia de 27,6 milhões de galões de combustível ao ano. Com um preço médio de combustível em 2023 de US$ 2,89 por galão, a United economizaria US$ 80 milhões ao ano”, disse Sheila Kahyaoglu, executiva americana e analista do setor de aviação em entrevista à Bloomberg. Com a acessibilidade desse tipo de medicamento em pauta, os planos de saúde enfrentarão um dilema sobre bancar ou não tais remédios.

De um lado da balança, está a diminuição de gastos com doenças decorrentes da obesidade; do outro, o subsídio mensal de suprimento das canetas emagrecedoras. O Sistema Único de Saúde (SUS) pode se beneficiar com a mudança. Seu gasto anual relacionado a doenças não transmissíveis foi de R$ 6,8 bilhões em 2019.

A estimativa é que 22% desse valor esteja ligado à obesidade e seus males. Se pensarmos que, até 2030, o sobrepeso no Brasil pode atingir 68,1% da população adulta, sua redução pode ter reflexos na economia nacional. Em contramão ao que acontecia nas últimas décadas, o aumento da busca por roupas cada vez menores é outro indicativo das transformações que começam a acontecer na sociedade.

Empresas norte-americanas já relatam uma mudança de consumo no varejo do país. Em entrevista ao The Wall Street Jornal, Jennifer Hyman, cofundadora e CEO da empresa de aluguéis de roupas Rent the Runway, afirmou que mais clientes estão vestindo tamanhos menores agora do que em qualquer outro momento nos últimos 15 anos. O mesmo cenário já foi notado pelo diretor criativo Abhi Madan, da marca de roupas para festa Amarra.

Segundo o estilista, a procura de seus varejistas por itens de tamanho entre 36 e 42 está cada vez maior, ao mesmo tempo em que acontece uma queda considerável nas vendas de peças do 46 ao 58. Esse movimento pode colocar em xeque a luta pela diversidade de corpos. Num mundo em que existe um medicamento que pode diminuir a obesidade, a gordofobia tende a ficar ainda mais presente em nossa sociedade.

Um dos sinais de que o ideal de magreza está voltando a dominar nossa relação com a imagem corporal coletiva é que a procura por cirurgias estéticas, como a lipoaspiração, também aumentou. Antes de 2021, o procedimento ocupava a quinta posição entre as intervenções mais procuradas pelos norte-americanos. Agora, pelo terceiro ano consecutivo, ocupa a primeira posição, segundo estudo da Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos (ASPS).

Um verdadeiro banho de água fria na cultura do body positive , que promove a aceitação da própria imagem..

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